Coronavírus no ‘vilarejo da peste’

Marina Navarro Lins
8 min readOct 23, 2020

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George Viccars, a primeira vítima da peste em Eyam, morreu nesta casa, que recebeu o nome de Chalé da Peste. Crédito: Marina Navarro Lins

Na noite do dia 23 de março, logo após o primeiro ministro Boris Johnson anunciar restrições para conter o então novíssimo coronavírus, o reverendo Mike Gilbert fechou as portas da Igreja de St. Lawrence, no vilarejo de Eyam, no norte da Inglaterra. É a primeira vez que as atividades da paróquia são interrompidas desde o século 17. A 55 quilômetros de Manchester, o “vilarejo da peste” enfrenta a pandemia com certo conhecimento de causa: em 1665 e 1666, dois surtos de peste bubônica fizeram com que os habitantes ficassem em quarentena por quase seis meses.

A história de Eyam está estampada num vitral que a igreja ganhou em 1985, feito pelo artista Christopher Webb. A versão mais aceita diz que pulgas infectadas chegaram ao vilarejo num carregamento de tecidos vindo de Londres, por volta de setembro de 1665. Até aquele ponto, a peste bubônica estava restrita ao sul do país. A primeira vítima de Eyam teria sido o alfaiate George Viccars, que morreu dias após abrir a tal caixa de Pandora. Na época, Viccars e seus contemporâneos não sabiam que a doença que exterminara um quarto da população europeia três séculos antes era transmitida pela bactéria Yersinia pestis, carregada por roedores e pelas pulgas que habitam seus pelos.

Até abril de 1666, 73 mortes haviam sido contabilizadas num vilarejo de apenas 750 habitantes. Maio trouxe um breve alívio aos nervos — e falsas esperanças. Com a chegada do verão, os números voltaram a aumentar. Foi então que o reverendo William Mompesson, em parceria com seu antecessor, Thomas Stanley, convenceu a população de que o único jeito de conter a peste era fazer um “cordão sanitário” isolando Eyam.

Segundo a historiadora Francine Clifford, que vive no vilarejo há 36 anos e fundou um museu dedicado ao tema, os moradores mais abastados conseguiram sair antes do lockdown. Os próprios filhos do reverendo Mompesson, por exemplo, foram enviados à casa de parentes em outra região; sua mulher, Catherine, se recusou a deixar Eyam sem o marido. Sem ter para onde ir, os habitantes mais pobres, que representavam dois terços do total, ficaram.

“Era uma população majoritariamente rural, sem educação e muito religiosa. As pessoas viam o reverendo como líder e foram facilmente convencidas de que permanecer e proteger a comunidade era um dever cristão. Mas eles sabiam do risco que corriam”, explicou Francine, por telefone: “Ao contrário da nossa quarentena hoje, que nos protege, a de Eyam era como assinar uma sentença de morte.”

Igreja de St. Lawrence, em Eyam. Crédito: Marina Navarro Lins

O paralelo histórico não escapou ao reverendo — e acredito que a ninguém que já tenha passado alguns minutos em Eyam. Num vídeo postado na página da Eyam Parish Church, no Facebook, um dia após o fechamento da Igreja de St. Lawrence, Mike Gilbert conta como ficou impressionado com a história de “bravura e heroísmo” daquele vilarejo quando visitou o lugar pela primeira vez, aos 9 anos. Ao interpretar Mompesson anos depois, Gilbert, “um ator fracassado”, diz ter tentando compreender o que o seu antecessor teria pensado e sentido ao enfrentar a peste. “Acho que agora ficou mais fácil de entendê-lo.”

No fim de maio, encontrei Mike Gilbert no jardim da igreja de Eyam, que ostenta uma bela cruz celta do século 8. Ao lado dela, está o túmulo de Catherine Mompesson, vítima da peste em agosto de 1666. Catherine voltava para casa ao lado do marido, após passar o dia cuidando dos pacientes, quando disse: “o ar está tão doce”. Com esse comentário banal, o reverendo percebeu que a mulher estava condenada. Um dos sintomas da doença, como eles já tinham identificado, era uma sensação adocicada e enjoativa nas narinas. Ela morreu poucos dias depois.

O reverendo Mike Gilbert em frente à Igreja de St. Lawrence. Crédito: Rick Parfett

Vestindo uma camisa quadriculada vermelha e branca de mangas curtas, calça jeans preta e um relógio de pulseira grossa azul clara, o reverendo de 58 anos teve sintomas leves de Covid-19 no início da pandemia e logo ficou bom. Já sua mulher demorou nove semanas para se recuperar totalmente.

“Acho que muitas pessoas ficaram desapontadas porque a minha mulher não morreu também, para fazer o paralelo”, brincou o reverendo, apontando para o túmulo de Catherine Mompesson, com seu humor mais britânico do que uma porção de pigs in blankets com uma pint.

Muito religiosos, os moradores de Eyam do século 17 trocaram a igreja abafada por cerimônias a céu aberto, numa espécie de anfiteatro ao ar livre, o Cucklett Delph. No local, as famílias ficavam em suas próprias bolhas, a três metros de distância umas das outras. No século 21, o Cucklett Delph foi substituído pelo Facebook.

O reverendo passou a rezar missas em lives e, em setembro, publicou um vídeo especial no Youtube com o serviço em memória das vítimas da peste, com direito à encenação de um encontro entre os moradores de Eyam dos dias de hoje e os de 1665, no Cucklett Delph.

Caminhar pelas ruas de Eyam é como visitar um museu ao ar livre e, a cada passo, ser relembrado da história de sacrifício coletivo daquelas pessoas que, por devoção ou por falta de opção, deram suas vidas para poupar tantas outras. Ao lado da igreja, as casas mais antigas do vilarejo têm, entre as folhas dos jardins cuidadosamente desalinhados, placas verdes com os nomes das vítimas da peste que moravam lá. O Plague Cottage, ou Chalé da Peste, traz o nome do paciente zero, Viccars.

Pelas ruelas laterais, é possível encontrar ainda mais placas mostrando onde famílias inteiras foram enterradas. Esses locais viraram pontos turísticos e estão destacados nos guias de Eyam, uma das principais paradas para quem visita o Parque Nacional de Peak District. A Boundary Stone também chama a atenção: a pedra com furinhos onde os moradores confinados deixavam moedas embebidas em vinagre, em troca da comida trazida por habitantes de cidades vizinhas.

Local onde é feito o churrasco de ovelha durante o carnaval de Eyam. Crédio: Marina Navarro Lins

Em maio deste ano, os moradores temiam que, com a chegada do verão, o fluxo de visitantes afetasse o isolamento social de uma população majoritariamente idosa. Sobre as placas que indicam a direção para o vilarejo, foram colados cartazes de “Fique em casa”, “Eyam fechado”, “Proteja a NHS” e “Salve vidas”. O tradicional carnaval do vilarejo, que acontece em agosto e tem como um dos principais eventos um churrasco de ovelha, foi cancelado.

“Sabemos como é sério e estamos tomando cuidado. Mas várias pessoas da cidade têm procurado refúgio no interior, o que nos deixa nervosos”, contou Joan Plant, de 73 anos, moradora de Eyam desde os 12. “Há nove gerações, minha família sobreviveu à peste. Agora, estamos revivendo a história. Sou muito privilegiada por estar viva.”

Joan Plant conseguiu traçar a sua árvore genealógica até Margaret Blackwell, que entrou para a história por ter ficado curada da peste bubônica após beber gordura de bacon. Delirando e com a visão embaçada, Margaret encontrou, na mesa da cozinha, a gordura esbranquiçada que o irmão despejara numa jarra após tomar o café da manhã. Com uma sede terrível e pensando tratar-se de leite, Margaret bebeu até a última gota do líquido viscoso e, poucas horas depois, já se sentia mais forte.

Por um tempo, acreditou-se que o remédio milagroso teria sido a salvação de Margaret Blackwell. No entanto, estudos mostram que a explicação mais provável é que os sobreviventes tinham uma mutação genética em comum. Como a cloroquina, a gordura de bacon não resistiu à investigação científica — e também pode não fazer bem ao coração.

Mapa de Eyam. Crédito: Marina Navarro Lins

“Ninguém sabia ao certo como a peste era transmitida, mas achavam que podia ser pela respiração. Cancelaram, então, todas as reuniões e proibiram funerais; as famílias ficaram responsáveis por enterrar seus mortos nos próprios quintais. Mesmo durante as cerimônias a céu aberto, eles mantinham a distância. Essa percepção de que o isolamento era importante foi incrível. Foi um pensamento radical e à frente do tempo”, disse a historiadora Francine Clifford.

Alguns dias depois da nossa conversa, recebi pelo correio o livreto “Eyam Plague 1665–1666”, escrito pelo falecido marido de Francine, o também historiador John Clifford. O texto me ajudou a recompor a história do vilarejo e a conhecer melhor seus personagens.

Cruz celta do século 8 no cemitério da Igreja de St. Lawrence. Crédito: Marina Navarro Lins

Entre os relatos que resistiram aos séculos, está o dos noivos Emmott Syddall e Rowland Torre. Rowland morava num vilarejo próximo e, durante o rigoroso inverno de 1665, ia diariamente a Eyam para ver a sua amada. Como entrar em Eyam se tornava cada vez mais arriscado, os dois combinaram que Emmott subiria ao topo de uma colina nos dias indicados e, assim, os dois “poderiam olhar um para o outro à distância e em silêncio” e garantir que estavam bem. No fim de abril de 1666, no entanto, Emmott não apareceu. Quando Eyam reabriu as fronteiras, Rowland foi um dos primeiros a entrar no vilarejo. Apenas um olhar para a casa deserta da família Syddall confirmou o pior.

Teve também quem, em pânico, tentasse escapar do sombrio destino. Uma mulher teria fugido para Tideswell e, ao ser questionada onde morava, arriscou uma resposta bíblica: “na terra dos vivos”. Surpreendentemente, a explicação bastou para o guarda que vigiava a entrada do vilarejo. Mas a mulher logo foi reconhecida por comerciantes, que a atacaram com paus e pedras até que ela saísse de lá.

Se levados em conta os dois surtos de peste, o pesadelo dos moradores de Eyam durou 14 meses. Aproximadamente um terço dos 750 habitantes morreu; é preciso levar em conta, porém, que alguns deixaram o vilarejo antes do isolamento. De acordo com os registros de Mompesson, 76 famílias foram afetadas.

Reverendo William Mompesson - Museums Sheffield.

No Natal de 1666, a vida começou a voltar ao normal. Alguns meses depois, os sobreviventes queimaram (ou enterraram, não se sabe ao certo) roupas, móveis e tudo o mais que pudesse conter vestígios da doença. Hoje, Eyam vive da sua história. E é nessa história de sacrifício que os cerca de mil moradores do vilarejo foram encontrar respostas e forças para enfrentar a nova pandemia. O pesadelo, dessa vez, é mais brando. Segundo Mike Gilbert, o vilarejo não teve mortes por Covid-19. Os dados oficiais mostram que o distrito de Derbyshire Dales, onde fica Eyam, registrou 553 casos e 83 mortes.

“Acho que existe um espírito comunitário muito forte aqui e me pergunto se isso vem lá de trás”, disse Gilbert: “Assim que tudo começou, criamos grupos de WhatsApp para conectar os moradores e ajudar quem precisasse de auxílio para comprar comida e remédios. Todo mundo queria fazer a sua parte, teve até briga para se voluntariar.”

E qual mensagem Eyam mandaria para o Brasil a respeito da pandemia?

“Eu diria que é real e que mata. Diria que obedecer as regras é fundamental, mesmo que seja um sacrifício. É um ato de amor e cuidado. Quando eu fechei a porta da igreja, eu estava dizendo: eu me importo, eu amo. Como cristão, é nisso que eu acredito. Deus nos mandou tomar conta especialmente dos mais fracos e dos vulneráveis”, concluiu o reverendo.

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